Dumb Money é um retrato da sociedade na Era-Covid
Produção vai além de um gênero que inundou 2023: filmes sobre marcas, empresas e CEOs
É impressionante como 2023 enfileirou filmes baseados em fatos reais sobre algumas das marcas e produtos mais populares mundo a fora.
A lista:
1) Air, dirigido por Ben Affleck, mostra os bastidores das negociações da Nike para assinar contrato com Michael Jordan e a criação do Air Jordan 1. O filme é ótimo, tem um elenco excelente e acerta ao se aproximar de outro gênero: o de filmes de assalto.
2) Tetris, estrelado por Taron Egerton, apresenta toda uma trama de EUA x União Soviética pelos direitos do joguinho de encaixar blocos. É divertido, carismático e contra uma história que, pelo menos para mim, não era muito conhecida.
3) Flamin’ Hot, dirigido por Eva Longoria, mostra como foi criado o sabor do Cheetos que dá nome ao filme. Um filme super básico e clichê, mas eficiente ao valorizar a cultura latina e mostrar como, a partir dela, o salgadinho e a Pepsico criaram um dos produtos mais consumidos no mundo.
4) Blackberry, de Matthew Johnson, é uma produção canadense que conta a ascensão e o declínio da marca de celulares. Por mais que seja curioso, principalmente o processo de criação do BBM, o messenger gratuito da marca, é um filme falho, cheio de clichês que exaltam um estilo de trabalho tóxico, tentando maquiá-lo com papo de coach. Ainda há uma xenofobia bizarra com chineses que é indefensável.
5) Gran Turismo, dirigido por Neil Blomkamp, é um filme de esporte, mas também fala sobre a marca Gran Turismo, a forma como o game cativa os jogadores e os negócios que ele gera. Não é à toa que os créditos finais mostram os carros sendo escaneados e os sons gravados para utilização no videogame.
O sexto filme dessa lista poderia ser Dumb Money (ou Dinheiro Fácil, como traduzido), dirigido por Craig Gillespie, de Eu, Tonya, Cruella e da minissérie Pam & Tommy e um elenco estrelado, encabeçado por Paul Dano, Seth Rogen, Sebastian Stan, Pete Davidson, America Ferrera, Shailene Woodley, entre outros tantos.
Digo poderia porque, ao invés de ser um filme sobre a marca da GameStop e o que aconteceu com ela no escândalo que tomou conta dos noticiários em 2021, na verdade a história foca no embate entre as pessoas que investiram nas ações versus o sistema de Wall Street.
Isso é um acerto fundamental para a produção. E já digo o porquê, mas antes preciso fazer um adendo aqui.
O filme também poderia ser ótimo se tivesse focado na GameStop?
Sim e a maioria dos filmes da lista acima mostra isso. O que diferencia Air e Tetris, por exemplo, de filmes como Blackberry é a abordagem que se dá para a história e o ponto de vista que ela mostra.
Em Air, Michael Jordan é apenas uma sombra grandiosa que paira por toda a história. Nosso foco está no processo interno da Nike, que desde o início é apontada como a mais fraca entre as concorrentes, e na negociação com a figura forte que é a mãe de Jordan. Ou seja, o roteiro transforma a Nike (sim, a Nike!) em um azarão para que, mesmo nós espectadores já sabendo o resultado, ainda torçamos por ela.
Então sim, filmes sobre marcas, empresários, empresas e produtos podem ser interessantes e um sub-gênero a ser explorado dentro de outros mais clássicos.
David Fincher fez um dos seus melhores filmes, abordando a criação do Facebook e as disputas que ocorreram depois. Mas como ele fez isso? Não como um documentário ou seguindo uma prancheta de remontar fatos, como Blackberry, por exemplo faz. O diretor de Se7en e Clube da Luta criou um estudo minucioso da personalidade do excêntrico Mark Zuckerberg. É parte da nossa jornada como espectador acompanhar de perto o comportamento dele, os fatos que ocorrem e então julgá-lo dentro do recorte apresentado.
E aí voltamos ao porquê do acerto de Dumb Money ao focar no embate dos dois grupos: o filme deixa de ser uma obra sobre o mercado financeiro e todas as dificuldades que envolvem compras e vendas de ação para se tornar um retrato do nosso comportamento durante a pandemia da Covid-19. De novo, é sobre o ponto de vista.
A Grande Aposta, o ótimo filme de Adam McKay, de 2015, já cumpriu o papel de nos mostrar como Wall Street cria termos e regras para dificultar o entendimento do que se passa por lá.
Dumb Money nos mostra como o isolamento da pandemia fez com que tivéssemos tempo para olhar para esse tipo de coisa. Da receita de pão aos investimentos em mercado de Bitcoin. Do artesanato até uma hecatombe de conteúdos em redes sociais que nos ensinavam e nos chancelavam a comentar qualquer tipo de assunto. Quem não achou que poderia ser sanitarista por um dia, que atire a primeira pedra.
É nesse contexto social, explorado a todo momento no filme, que acompanhamos Keith Gill (Paul Dano), investidor, analista financeiro e criador de conteúdo, que explodiu dentro do Reddit ao olhar atentamente para as ações da GameStop e produziu uma compra em massa delas junto com outros usuários. Os ganhos foram absurdos, ações valorizaram mais de 400%, o investimento de Gill passou de 50 mil para 50 milhões. Uma loucura total.
O roteiro do filme acerta em mostrar para o espectador diversas pessoas comuns que foram contagiadas por esse “short squeeze”. Vemos então duas estudantes na faculdade, ambas com débitos do curso para pagar (as ótimas Talia Ryder e Myha'la Herrold), um funcionário da própria loja GameStop (Anthony Ramos) e claro, como não poderia deixar de ser como símbolo da época: uma enfermeira (America Ferrera), com salário baixo e dívidas para pagar.
Milhares e milhares de pessoas como esses personagens foram afetados e engajados por conteúdos de Youtube, TikTok, Instagram e Twitch ensinando sobre os benefícios dos investimentos na bolsa e ações de ganho rápido. Muitos apenas perderam dinheiro e é daí que vem a expressão que dá nome ao filme: o dumb money é o dinheiro “fácil” que vem daqueles investidores casuais vistos como piada por Wall Street.
O filme ainda se favorece do ótimo ritmo da montagem de Kirk Baxter, que, veja bem, também foi responsável por A Rede Social, Garota Exemplar e Mindhunter, obras não apenas de David Fincher, mas que também pulam entre vários personagens e seus microcosmos. “Dinheiro Fácil” nunca perde o fio da meada e nunca se torna um “jargão” de Wall Street que deixa o espectador confuso.
Dumb Money é uma grata surpresa ao não se deixar transformar em um A Grande Aposta 2.0. Paul Dano entrega mais uma grande interpretação e eu não duvidaria vermos o nome dele cotado para os prêmios do início de 2024. Entretanto, o que mais me cativou aqui foi poder olhar para o filme e enxergar um passado tão próximo, mas que muitos parecem já ter esquecido.
O “short squeeze” da GameStop é mais uma das consequências do isolamento social e de vários traumas (que o filme também aborda) que a pandemia deixou na nossa sociedade. Um sentimento de revanche contra o sistema, possibilitado pelo acesso à informação, mesmo que não haja certeza de que ela é 100% confiável.
E essa é a magia da arte do cinema, nos transportar para aquele recorte, aquele momento e aquelas pessoas. Mesmo que para isso use a história de uma marca, um produto ou um empresário.
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Uma curiosidade: o filme é produzido pelos irmãos Winklevoss, os gêmeos interpretados por Armie Hammer em A Rede Social, e que se envolveram na disputa pelos direitos do Facebook com Zuckerberg.
Opa, vindo do cinemou e twitter vai ser bacana acompanhar suas resenhas.