É do Brasil! Pena que só no Brasil.
Do Recife, de Retratos Fantasmas, ao Rio de Janeiro, de Nosso Sonho, o cinema nacional mostra sua força como contador de histórias, sejam elas íntimas ou televisionadas para o país todo.
Uma das piores coisas de se morar fora do Brasil e amar cinema é a perda do acesso aos filmes nacionais lançados. Volta e meia alguém me pergunta se já vi o filme nacional X ou o filme brasileiro sensação do ano e quase sempre a minha resposta é: ainda não consegui ver.
Não é impossível, ok? Quem tem acesso fácil para algum festival de cinema internacional pode assistir um ou outro. Em 2019, por exemplo, durante o festival de Vancouver, pude ver os mais badalados do ano: Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz. Em 2023, o ótimo Pedágio, de Carolina Markowicz, também marcou presença por lá.
Facilita o acesso quando os streamings levam alguns filmes para territórios fora. O Prime Video chegou a levar um filme do Paulinho Gogó para o Canadá e a Netflix lançou o indicado do país ao Oscar em 2023, Marte Um, de Gabriel Martins, algum tempo depois.
Essa “sorte” não vai muito além disso e, por lá, perdemos os ótimos filmes de terror e suspense que o país tem, como As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida e Morto Não Fala, de Dennison Ramalho.
Fenômenos como Medida Provisória, de Lázaro Ramos, Mussum, de Sílvio Guindane e Nosso Sonho (já falo mais dele), de Eduardo Albergaria, infelizmente não devem passar perto das terras ao norte.
E se tinha um filme que eu queria ver logo era Retratos Fantasmas. Por uma coincidência do destino o filme entrou na Netflix quase ao mesmo tempo que passei pela Polícia Federal no aeroporto do Galeão.
Recife e Cinema em Poesia, Imagem e muitas memórias
Quando foi anunciado em Cannes, tive a plena esperança de que, assim como Bacurau, teria a oportunidade de ver Retratos Fantasmas no VIFF. Durante o evento de lançamento da programação do festival, aos poucos, fui me frustrando por não ver o filme entre os outros.
A frustração foi maior ainda quando Retratos foi anunciado como o escolhido do Brasil para tentar uma vaga no Oscar e não havia o menor sinal de lançamento por lá. Além disso, a minha vinda ao Brasil estava longe e o filme, que estava em cartaz em poucas salas, com certeza já teria saído quando chegasse aqui.
Foi então que o próprio Kleber anunciou que o filme entraria na Netflix do Brasil e um sorriso genuíno se abriu no meu rosto. E a espera não poderia ter valido mais a pena.
Retratos Fantasmas é um dos grandes filmes do ano e um registro poético, narrado pelo próprio diretor, que parte de um “microcosmos”, a Recife do diretor, para o “macro” das nossas próprias lembranças e sentimentos que já passaram pelas nossas vidas.
É impossível, já de cara, não mergulhar nas memórias e histórias do diretor no apartamento em que ele viveu com a mãe e que, depois, começou a usar para filmar suas obras. A troca entre os registros antigos, com cenas de obras dele, como O Som ao Redor, e imagens mais atuais, vão se emaranhando de uma forma que realidade e ficção viram uma só.
Mas se parte da obra dele também vem de memórias e experiências por ali, como o latido do cão do vizinho, será que existe realmente essa divisão entre o mundo real e o dos filmes?
De um mundo menor, o do apartamento, o diretor então nos pega pela mão e vai mostrar o centro de Recife e suas salas de cinema, quase todas, fechadas, abandonadas ou que foram transformadas em outro tipo de serviço.
Esse retrato íntimo da memória do diretor, de sua juventude e vida por aqueles lugares ricos em histórias é ao mesmo tempo fascinante e de uma tristeza profunda.
Esse abandono dos centros e dos espaços culturais, principalmente os cinemas de rua, me levou ao Alexandre pequeno, que foi assistir Bambi em um cinema de rua no Méier, na Zona Norte do Rio. Me lembrou quando mudei para Araruama, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, e o único cinema de rua tinha fechado há pouco tempo. Antes de virar uma Igreja Universal, o prédio permaneceu com o cartaz de Twister, de Jan de Bont, na frente por meses, como uma lembrança, quase uma lápide, daquele espaço.
Eu tinha nove anos na época, mas nunca me esqueci daquele pôster.
Me peguei pensando como seria um Retratos Fantasmas por onde passei e vivi.
Ter que ir para uma cidade vizinha para assistir Titanic com a turma da escola. De volta ao Rio para estudar na faculdade, ir ao Cine Palácio, na Cinelândia, no início do namoro. Ficar fascinado com o final de Whiplash e sair do Roxy, andando atônito pela Rua Bolívar, em Copacabana, até o metrô. Todos esses cinemas já não existem mais.
Quantas vezes perdi minutos e minutos olhando os pôsteres, críticas, “Bonequinho viu” e horários de filmes no Segundo Caderno, d’O Globo, exatamente como na cena em que Kleber fala sobre a febre do King Kong na cidade dele.
Aquela Recife e todas as histórias e personagens incríveis que Kleber Mendonça Filho vai enfileirando em apenas 95 minutos de filme viraram uma grande viagem por todos os anos e pelos Retratos Fantasmas da minha vida também.
E tudo isso, finalizado com a cereja do bolo: uma cena do próprio diretor e um motorista de Uber, que me pegou desprevenido. O real e a ficção nunca fizeram tanto sentido juntos.
Ressuscita, São Gonçalo! Liberta, DJ!
Ainda no campo das lembranças, aproveitei essa passagem pelo Brasil para assistir Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha.
Se com Retratos Fantasmas as chances de assistir ao filme em Vancouver eram pequenas, a história da dupla então, vish... era mínima. A única esperança seria virar conteúdo GloboPlay e torcer para ser liberado para lá!
Corri para ver, já que o filme está em cartaz há quase dois meses e está perdendo quase todas as suas salas para Marvel, Jogos Vorazes e outros filões americanos.
E olha... vou te contar:
Como Nosso Sonho é um filme LEGAL DEMAIS de se ver. Se existe uma busca por frase forte que possa descrever a obra:
Nosso Sonho é a melhor cinebiografia musical brasileira desde Dois Filhos de Francisco, de 2005.
Claro, a memória é um dos maiores trunfos para Nosso Sonho dar certo, mas nem só de nostalgia vive o filme de Eduardo Albergaria.
A história da dupla Claudinho e Buchecha, sucesso estrondoso em todo o país e que começou ali no meio da década de 1990, segue a clássica jornada de jovens que buscam no sucesso uma forma de dar melhores condições de vida para seus familiares e novas perspectivas para eles próprios.
O interessante em Nosso Sonho é que o filme não está preocupado em recriar cada momento, cada passagem ou cada encontro da dupla com outros famosos. É uma história de amizade, que ganha contornos de fábula ao trazer o ponto de vista de Claucirlei, o Buchecha, sobre o encontro, o tempo junto e perda do anjo da guarda dele: Claudinho.
Ancorado pelo carisma do fantástico Lucas Penteado, como Claudinho, e do simpático Juan Paiva, como Buchecha, Nosso Sonho nos joga dentro de momentos icônicos de uma dupla que dominava os programas de TV aos sábados e domingos. Era uma época em que internet mal existia e ver os dois no Faustão, no Gugu, na Xuxa ou na Angélica toda semana, só fazia com que a popularidade deles aumentasse ainda mais.
E assim como a “Era da TV”, Claudinho e Buchecha também dominavam a “Era dos CDs”, vendendo muitos discos e enfileirando hits a cada novo trabalho. Os muitos sucessos da dupla estão lá na tela da forma como eles sempre as apresentavam: com uma simplicidade e alegria que poucos conseguiram nesse período.
Olhava para os lados e TODOS no cinema estavam dançando ou balançando os pés e mãos durante os momentos musicais do filme.
E assim como foi com Retratos Fantasmas, de novo me peguei lembrando do Alexandre de nove ou dez anos, nas festinhas de aniversário dos amigos, fazendo as dancinhas e tentando decorar todos os nomes de locais de “Nosso Sonho”, a música.
Nosso Sonho: A História de Claudinho e Buchecha é cinebiografia nacional com pinta de blockbuster de sucesso e pelos motivos certos: o filme consegue transformar o carisma e a simpatia da dupla em um filme com as mesmas características sem precisar tentar recriar a roda.
Só isso já faz com que ele seja melhor que diversos filmes lá de fora que tentam contar a história de outros ídolos musicais. E Penteado e Juan ainda cantam. Cof cof cof...