Entre Robôs e Demônios: A Decepção
A "originalidade" de Resistência e a "coragem" de O Exorcista - O Devoto não são suficientes para vencer o rótulo de "genérico". Ou coisa pior.
Esse período do ano, entre o final de agosto e o fim de outubro, é complicado para o cinema. Os filmes do verão americano já acabaram, os blockbusters de fim de ano não estrearam e a maioria dos lançamentos visando os grandes prêmios só foram para festivais.
Vez ou outra temos surpresas como um Coringa, do Todd Phillips, para quebrar esse marasmo, mas a tendência é que as salas de exibição fiquem cheias de coisas tipo Os Mercenários 4.
Em 2023, a expectativa é que teríamos algo diferente. Gareth Edwards, dos ótimos Rogue One e (sim, eu gosto!) Godzilla, traria Resistência, um sci-fi original, nada de adaptação ou continuação. Duas semanas depois, David Gordon Green, diretor da nova e polêmica trilogia Halloween, mexeria em outro vespeiro, agora trazendo uma continuação para ninguém mais, ninguém menos que: O Exorcista.
Os trailers de ambos os filmes eram ótimos. Visual, elenco... tudo encaminhava para dar certo. Mas esse pretérito imperfeito é implacável.
Os Robôs
Uma das coisas que mais ouvi enquanto estudava roteiro era “Show. Don’t tell”. Essa expressão era utilizada corriqueiramente quando os nossos textos eram analisados e precisavam ser revisados. Ela significa que estávamos escrevendo emoções ou pensamentos dos personagens apenas na cabeça deles ou para quem estava lendo. Visualmente, ela não representa nada na história. O correto é que o personagem reaja, aja ou demonstre aquilo que está sendo “explicado” pelas palavras.
O maior problema de Resistência poderia ser representado pela mesma expressão. O roteiro de Edwards e Chris Weitz não deixa que nós vejamos as reviravoltas ou as revelações da história. Toda hora algum personagem tem que parar o que está fazendo para nos explicar algo. Harun, interpretado por Ken Watanabe, faz isso duas vezes e com as maiores “surpresas” do filme.
Parece ironia que Resistência seja um filme tão rico em construção de mundo e no visual, mas que não consiga se utilizar disso para a narrativa. Se pensarmos outros filmes que abordam inteligências artificiais, o uso do visual e da direção de arte caminha de mãos dadas com a história. A clássica cena final de Roy Batty, em Blade Runner, é o maior exemplo disso. O grande discurso dele está alinhado ao que é mostrado e a ideia que ele quer transmitir com “todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva” não precisa do “explicado”.
Outro exemplo menos “clichê” é o personagem de Jude Law em AI: Inteligência Artificial. A maquiagem, as roupas, o cabelo, tudo constrói a narrativa do robô-gigolô que vai acompanhar David até o objetivo dele.
O que mais me decepciona com Resistência é que o potencial estava lá. O filme está longe de ser ruim. De verdade.
A história mostra uma sociedade em que humanos e máquinas conviviam bem até que um ataque orquestrado (até onde sabemos) pelas IAs começa uma guerra. Os robôs são caçados no ocidente e encontram refúgio do outro lado do mundo. Os humanos, na verdade os norte-americanos, criaram a NOMAD, uma estação que fica sobrevoando a Terra caçando os líderes da resistência. Nesse mundo, acompanhamos Joshua (John David Washington), um ex-soldado, que é recrutado para matar o criador de uma nova arma das máquinas.
Se existe algo genuinamente interessante na abordagem do homem versus máquina em Resistência, está na forma melancólica que vemos essa sociedade de IAs. A organização social, crenças e até uma certa fragilidade diante da força do inimigo. Essa inversão é ótima, já que estamos acostumados a ver o “artificial” sempre sendo mais forte que o “natural”, seja em força ou inteligência.
Falta, entretanto, sutileza. Tudo no filme é apressado. Da apresentação do protagonista aos seus objetivos. Do encontro com as máquinas ao conflito dele com a própria humanidade. Se o filme remete claramente as invasões do ocidente ao oriente, atacando e destruindo com base nos próprios princípios, falta o contraponto, o lado mais filosófico e que vai de encontro ao militarismo psicótico.
Os grandes méritos de Resistência estão na parte técnica. A fotografia é uma das mais bonitas do ano. Os efeitos especiais nos fazem questionar como filmes que custam o dobro (ou até o triplo) não conseguem chegar ao mesmo nível. A trilha sonora de Hans Zimmer é ótima, mesmo quando (de novo) tenta falar mais alto que tudo.
John David Washington herdou o carisma do pai e, mesmo sem ter muito o que acrescentar ao protagonista Joshua, mantém o espectador torcendo por ele dentro da previsibilidade do roteiro.
Resistência tinha tudo para ser o grande filme de ficção-científica do ano. Talvez de muitos anos. O papo sobre inteligência artificial está em todas as rodas de bares. Mas falta um a mais. Falta um brilho, que até dá sinais ali nos primeiros minutos, mas que se perde em um emaranhado de clichês e conveniências. Uma pena.
Os Demônios
Duas coisas precisam ser ditas aqui antes de falarmos de O Exorcista – O Devoto:
Primeiro: é (quase) impossível tentar dar sequência ao O Exorcista original sem sofrer com as comparações. Chega a ser injusto com qualquer um que tente essa façanha.
E segundo: David Gordon Green é um cara de coragem. Depois de mexer (e bem) em um dos maiores clássicos slasher e o filme que dita o gênero até hoje, com Halloween, ele agora bota a cara para dar continuação ao maior e mais consagrado filme de terror da história.
Assisti na última semana aos três filmes, dirigidos por Green, que dão sequência ao trabalho de John Carpenter. Ao contrário de muitos, achei o primeiro legal, principalmente a visão do trauma para a família de Laurie e para Haddonfield. Já o segundo, Halloween Kills, acabou sendo o meu favorito. Sim, desculpa se você odeia o filme, mas eu adorei a visão da transformação do trauma em ódio, perseguição e paranoia. O conceito de que o medo sobrevive sempre é excelente e um retrato perfeito da sociedade norte-americana e a renovação constante de medos que justificam os horrores. O terceiro, acho que tem ideias legais, mas não consegue se entender dentro do próprio conceito criado nos anteriores.
A expectativa então, mesmo vendo críticas negativas, era de que David Gordon Green pudesse pegar as ideias de O Exorcista e dar essa cara mais moderna para obra. Ou que então ele subvertesse ela, mesmo que para isso tivesse que enfrentar a fúria dos fãs.
Resultado: nem uma coisa e nem outra.
“O Devoto” é o mais genérico que um filme de terror/exorcismo pode ser. Uma situação em que jovens andam em um local desconhecido e acabam possuídas. Daí o “demônio” vai se aproveitar de traumas e comportamentos daqueles que cercam as possuídas. No meio do caminho, alguém terá que pedir ajuda para uma personagem do passado da série. E é isso.
Tirando a maquiagem interessante das jovens Katherine e Angela (com boas atuações de Olivia O’Neill e Lidya Jewett, respectivamente) e algumas cenas bem filmadas e montadas – a chegada das jovens ao hospital é a melhor coisa do filme – pouco sobra.
O filme acrescenta tantas tramas e questões, muitas delas apenas para justificar os ataques das possuídas aos pais no final, que se perde em todas. O protagonista Tanner, vivido pelo bom Leslie Odom Jr., é o mais afetado. Ser pai solteiro após a perda traumática da mulher, a falta de fé e o ceticismo na resolução do problema são elementos trabalhados irregularmente, sempre favorecendo o que convém ao roteiro.
E aí vem o maior pecado do filme: a volta de Chris MacNeill, vivida por Ellen Burstyn. Ela faz parte desse arco de Tanner buscando por respostas, o que é perfeitamente justificável. A forma como “O Devoto” a trata é a pior possível. O trauma da família no filme original é uma simples desculpa para trazer a personagem de volta, já que em momento nenhum, a não ser em uma passagem em off, ela utiliza o conhecimento para ajudar Tanner ou a transformar a jornada dele. E pior, o roteiro utiliza a personagem como uma forma de encarar a ameaça, como se ela tivesse virado especialista em exorcismo. Tudo isso para simplesmente: NADA.
Em comparação bem esdrúxula, pense na Marvel e quando ela traz participações especiais “importantes” em alguns filmes apenas pelo fan-service. No fim, se Chris MacNeill estivesse lá ou não, nada mudaria para o filme. Entretanto, para a personagem em si, as coisas pioram. E muito.
O filme ainda sofre do grande mal do cinema blockbuster atual, aquele que está mais preocupado em preparar o terreno para os próximos milhões em bilheteria do que no produto (sim, produto e não obra) de agora.
Para piorar, toda a discussão sobre fé, sobre entender o papel dela e que cada um tem o direito de ter ou seguir sua própria, assunto que poderia ser central na trama já que divide o mundo, acaba sendo uma desculpa esfarrapada para a união de forças no terceiro ato.
Até a violência do novo filme é genérica.
Quando William Friedkin fez O Exorcista, toda a questão em volta do grafismo tinha um propósito. As pessoas estavam assistindo ao vivo na televisão a Guerra do Vietnã. Há anos as famílias do american way of life eram assombradas por imagens de pessoas com membros decepados, corpos queimados e fileiras e fileiras de caixões. O que poderia chocar uma sociedade que via em tempo real milhares morrendo e matando outros milhares? O desconhecido.
Uma força sobrenatural que confronta o próprio Deus que essa sociedade se apoia. E esse demônio desconhecido entra no corpo de uma jovem menina, com a imagem imaculada da infância. Essa imagem da infância se torna desfigurada, mutilada e obscena. Friedkin, como gênio que era, controla o terror e vai acrescentando camadas piores a cada cena. Os momentos de Regan sofrendo no hospital são tão ou mais perturbadores do que os dela na cama do quarto.
O que David Gordon Green não entende é isso. Não adianta ele colocar uma menina se masturbando na igreja, se até ali não há um propósito para isso ou o porquê de tentar chocar com uma cena covarde, que mal enquadra o terror que ele quer proporcionar. Qualquer vídeo da nossa realidade, seja da TV ou nas redes sociais, é muito mais impactante.
O que assusta em O Exorcista, o original, é a nossa perda de fé em poder salvar Regan. É naquele desconhecido que transforma todo o ambiente do lar, da maternidade e do amor entre mãe e filha. O próprios padres que encaram o demônio têm suas fraquezas e forças bem definidas. Dessa forma, quando eles vão encarar o demônio, nós espectadores sabemos o que temer por eles e com eles. Green fica patinando de um lado para o outro, mais preocupado em encontrar um “plot twist” fraco para o momento chave da trama.
O Exorcista – O Devoto prova que não basta ter coragem para mexer em IPs famosas. É preciso saber qual o motivo de se meter nesse vespeiro. Há o que falar? Se sim, eu serei o primeiro a defender. Aqui, não há nenhum motivo. Se existe, ele deixou de fora da história. Logo, o filme também prova que, neste caso, não é injusto criticar e compará-lo com o original.
Dica: Assista ou reveja Invocação do Mal e Invocação do Mal 2. James Wan sabe o que quer e tem o que dizer.