Os Poderosos Chefões na TV
Séries documentais do GloboPlay sobre o Jogo do Bicho e Eurico Miranda mostram que as máfias brasileiras deveriam estar nas telonas também.
Volta e meia a gente vê no reino da internet alguém soltar um “isso é suco de Rio de Janeiro” ou “é o Rio de Janeiro, em São Paulo não tem isso”.
Desde as titânicas novelas da Rede Globo, que até hoje ainda se enfileiram noite adentro e ocupam números absurdos de televisores, até as novas mídias, como as lives quase diárias do Casimiro, o imaginário do Rio e do carioca sempre esteve presente nessa “cultura popular”. Do Leblon, das novelas de Manoel Carlos, e o Divino, bairro fictício da Zona Norte, de Avenida Brasil ao bairrismo e a paixão pelo Vasco da Gama, do streamer, a cultura carioca foi explorada ao máximo, sempre misturada com seus atributos da natureza.
No cinema moderno, a viralização de Tropa de Elite, de José Padilha, na pirataria e vendedores ambulantes explodiu conceitos como a corrupção na Polícia Militar fluminense, a força física e imagética do Batalhão de Operações Especiais, o Bope, e, claro, tirou do noticiário local as histórias da guerra ao tráfico nas comunidades da cidade.
As comunidades já haviam chegado até Hollywood alguns anos antes com o Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e seus personagens que até hoje circulam pela cultura pop do país em camisas e memes.
Paulo Gustavo, Paulinho Gogó (segunda semana seguida citado aqui, tá?), Marcelo Adnet, Mussum, Casseta e Planeta, entre muito outros comediantes também são responsáveis diretos por levar o “jeitinho carioca”, através da TV, para o país inteiro.
Foi então que, ao chegar ao Rio para passar algum tempo com a minha família, me deparei com duas obras que costuram história, cultura, folclore, violência e, claro, muito “jeitinho carioca” para falar sobre personagens tão interessantes que mereciam estar no cinema e em grandes produções de gênero.
O Bicho: entre Coppola e Scorsese
Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho é talvez a história com mais cara de cinema que vi esse ano. E são tantas tramas, que talvez precisasse de um universo expandido estilo Marvel para contar todas elas na ficção.
Produzida com o selo Conversa.Doc, do programa Conversa com Bial, a série documental é dividida em sete capítulos que contam desde a criação do Jogo do Bicho em 1892 até possíveis envolvimentos na morte da vereador Marielle Franco, em 2018.
Narrada pelo jornalista e apresentador Pedro Bial, a série enche os olhos do espectador principalmente por trazer depoimentos das figuras centrais (as que ainda estão vivas, claro) das famílias que dominaram os negócios do Bicho ao longo desse tempo.
Como em O Poderoso Chefão, os primeiros três episódios da série seguem muito bem os passos da máfia mostrados nos filmes de Francis Ford Coppola. Já de cara conhecemos a história da cúpula do jogo e dos patronos Miro Garcia, Capitão Guimarães e Castor de Andrade. Somos apresentados aos seus códigos de conduta, seus negócios, divisões da área da cidade e, claro, suas famílias.
Assim vai acontecendo com Michael Corleone, também vemos o papel dos herdeiros dentro do negócio do jogo do Bicho, seus primeiros passos, ascensão, novos negócios, perda de controle e, claro, a decadência.
É nesse momento, na metade da série que a máfia carioca deixa de ser mais Coppola para se tornar mais Scorsesiana. Desde a narração pelos protagonistas, aos próprios arquétipos dos personagens, Vale o Escrito se torna uma obra que cola na carreira do diretor e suas criações.
A personalidade explosiva de Johnny Boy, em Caminhos Perigosos, ou do Henry Hill, de Os Bons Companheiros, casa diretamente com os depoimentos sobre o “herdeiro” dos Andrade, Rogério.
As mulheres da história, assim como nos filmes de Scorsese, se dividem entre as fatais e as mulheres dos mafiosos. Shanna Garcia, o estudo mais interessante de Vale o Escrito, é, como a Ginger McKeena, feita por Sharon Stone em Cassino, a personagem que vai passando com força no meio desse mundo dominado pelos homens. Não é à toa que ela é acusada de manipuladora e criminosa por um homem rival. A mãe de Shanna, Sabrina, por outro lado cumpre o papel da Karen Hill, de Os Bons Companheiros, aceitando as traições e vivendo de uma lembrança do passado com Maninho Garcia.
Os tiroteios, assassinatos e a facilidade com que as vidas são tiradas pelos mafiosos e seus capangas deixaria tanto Coppola, quanto Scorsese impressionados. Não há limites para quem se mete no caminho dos donos do Bicho.
Vale o Escrito é uma aula de história do Rio de Janeiro como poucas vezes vimos em alguma obra do audiovisual. Sem tomar partidos, entendemos o lado de um, desconfiamos de outro e vemos a humanidade até no maior dos monstros do passado recente da cidade. Povoada de personagens incríveis, tanto do lado da contravenção, quanto do lado das autoridades – com destaque absurdo para o delegado da Polícia Civil Vinícius George -, a série é quase obrigatória.
Em certo ponto, a série mostra a morte do filho de um dos bicheiros, assinado por rivais, e um dos policiais diz: “ele é pai, assim como todos nós, o que você esperaria que ele fizesse agora?”. São momento assim, que tornam esse emaranhado de tramas mafiosas, e com cara de cinema, em algo muito mais humano.
E não é exatamente assim com Michael e a dor da perda de Don Vito? Ou do abandono de Frank Sheeran, de O Irlandês, no fim da vida?
Casaca e o Complexo de Deus
Como bom vascaíno, eu não poderia deixar de assistir uma série documental sobre a maior figura folclórica e política da história do clube. A Mão do Eurico é, assim como Vale o Escrito, antes de qualquer outra coisa, um retrato humano sobre o “Poderoso Chefão” do Vasco da Gama.
Contado do ponto de vista, majoritariamente, dos familiares e dos jornalistas que cobriram o Vasco e o futebol carioca durante o tempo de Eurico Miranda, a série mostra a tragédia (em vários sentidos) de um homem com Complexo de Deus.
Assim como na série sobre o Jogo do Bicho, A Mão do Eurico é povoado por personagens interessantes, que orbitam esse titã midiático.
Na família, a esposa e um dos filhos mais velhos trazem o sentimento de quem foi perdendo o marido e o pai para o Vasco. Essa imagem contrasta diretamente com Euriquinho, filho mais atuante na política do clube, que trata o pai sempre pelo nome e em um pedestal acima do bem e do mal. Enquanto uns aconselhavam e se entristeciam ao ver a tragédia que sucumbia o todo poderoso dirigente, Euriquinho se mostra, pelos depoimentos dados, o braço direito mais permissivo possível.
No lado do esporte, não há como negar que a presença de Romário, apadrinhado de Eurico e rei das frases de efeito, contribui demais para o entretenimento. Todo o segmento da briga entre ele e Edmundo e o da final da Taça João Havelange são dignos de um bom midpoint de roteiro. Depois daquilo, a trajetória do protagonista não seria mais a mesma.
A tragédia de Eurico Miranda se mescla diretamente com a do Vasco da Gama dos últimos 20 anos. A participação de jornalistas como Eric Faria, um dos pontos altos da série, Tino Marcos e Gilmar Ferreira colabora para que isso seja mostrado, sem nunca deixar a imagem do dirigente se tornar a de um intocável.
Momentos como o paralelo da relação dele com Roberto Dinamite, como jogador e depois presidente do Vasco, as brigas dentro da federação de futebol do Rio – inclusive com o bicheiro Castor de Andrade -, a vida política e seu golpe final, pouco antes de falecer, fazem de Eurico Miranda um personagem fascinante. Daquele que seria protagonista de uma obra de Pablo Larraín e dividiria o público na saída do cinema.
Eurico sempre se achou muito maior do que ele realmente foi, mas também incomodou muito mais do que os rivais gostam de admitir. Terminou como os reis loucos da literatura, repetindo bordões, piada para os adversários, mas com uma imagem que ainda vai assombrar por muito tempo.
E como ele sempre gostou de puxar aos gritos: Casaca!